Dragão antropofágico X Santo(s) guerreiro do entretenimento

Por Silvio R. Mieli e Renato Levi Pahim

Hoje é segunda-feira e decretamos feriado

Chamei Dom Paulo Coelho e saímos lado a lado

Lá na esquina da Augusta quando cruza com a Ouvidor

Não é que eu vi o Sílvio Santos?

Não é que eu vi o Sílvio Santos?

Sorrindo aquele riso

Franco e puro para um filme de terror

Como é que eu posso ler

Se eu não consigo concentrar minha atenção?

Se o que me preocupa no banheiro

Ou no trabalho é a seleção

(Vê se tem Kung Fu aí na outra estação)

Raul Seixas (Super Heróis)

A Igreja Nossa Senhora das Celebridades do Brasil entroniza mais um Santo(s). 

Enquanto “colegas de trabalho” enlutados e empregados órfãos do pai-patrão incansável prestavam as suas últimas homenagens, urge recuperar um dos encontros entre Silvio Santos e o dramaturgo Zé Celso. 

Em agosto de 2017, ambos reuniram-se na sede do SBT para tentar um acordo sobre o terreno (de propriedade do empresário/apresentador) ao lado do Teatro Oficina, no bairro do Bixiga, em São Paulo — motivo de uma querela que se arrasta há mais de 40 anos, e que agora parece finalmente resolvida em favor da criação do providencial Parque do Bixiga.

Frente a frente o guerreiro do entretenimento — self made man, empático, carismático, risonho, magnânimo, comunicativo — contra o dragão sonhador, enfático, performático, antropofágico, sempre enfurnado no Oficina do capeta tramando alguma sublevação artístico-cultural.  

Segue um trecho do diálogo:

CENA 1, interno dia: Entram na sala de reuniões do SBT Silvio Santos e Zé Celso acompanhados de assessores, além do então vereador Eduardo Suplicy (PT) e do prefeito de São Paulo — na época João Dória Jr. (PSDB). O dramaturgo veste um manto verde no formato de um poncho, conferindo-lhe o aspecto de liderança xamânica.

Frame retirado do vídeo: ‘Vou transferir a cracolândia pra lá’, diz Silvio Santos a Zé Celso sobre Teatro Oficina”. Folha de S.Paulo, 29/10/2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=S-k4CcFgmJo.

(SILVIO SANTOS) Vc está fantasiado de mexicano…

(Zé CELSO) De Índio mexicano. É tarahumara. Eles não se consideram mexicanos…

(…)

E logo começa a discussão sobre o futuro do terreno.

(SILVIO SANTOS) Embora eu sendo um homem rico, não é um dinheiro para mim (SIC) jogar fora, nem para dar de auxílio a quem quer que seja.

(Zé CELSO) Você propôs a troca por um terreno de mesmo valor. 

(…)

(SILVIO SANTOS: às gargalhadas) O meu secretário deu uma boa ideia. A gente coloca lá a cracolândia e o drogado que mais se destacar no dia ganha um prêmio…

(…)

— (SILVIO SANTOS) O que você vai fazer com o terreno? (…) Se o terreno fosse teu o que você iria fazer?

— (Zé CELSO) AnhangaBAÚ, inspirado em você, da FELIZcidade !!!

Diante do desenho da proposta, Zé Celso e a arquiteta cênica do Teatro Oficina Karina Matzenbacher começam a descrever o projeto multicultural para a área.

Frame retirado do vídeo: ‘Vou transferir a cracolândia pra lá’, diz Silvio Santos a Zé Celso sobre Teatro Oficina”. Folha de S.Paulo, 29/10/2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=S-k4CcFgmJo.

— (SILVIO SANTOS)  Ninguém vai dar isso para você, nem prefeitura, nem governo, ninguém vai dar, não sonha!!! A única coisa tua aqui, e assim mesmo não sei se é teu, é o teatro — referindo-se ao Oficina).

(Zé CELSO) Não, não é meu.

(SILVIO SANTOS) De quem é o teatro?

(Zé CELSO) Do estado de São Paulo (…) Na minha realidade eu não quero construir nada lá. Eu quero botar tenda para show, para circo, para fazer teatro na tenda porque é o último vazio de São Paulo. Aquele lugar é MA…RA…VI…LHOSO…!!!!

(SILVIO SANTOS) Tá bom Zé…pode sonhar…

(Zé CELSO) Não é sonhar. São Paulo vai se enfartar de tanto carro e tanta torre. Tem que ter uma transformação (…) Você é um cara super-rico, super-generoso.

(SILVIO SANTOS rindo e ironizando) Eu tenho culpa de ser rico? Eu dei sorte. Você não deu. O problema é teu!!!! (…) 

(SILVIO SANTOS muda de humor e endurece a discussão). Eu quero saber o que vai fazer com o terreno. Não é justo alguém pagar por um terreno e não poder ficar com ele, mesmo que seja pra não fazer nada. Isso aqui é uma democracia ou é um regime autoritário? Não é possível!

(ZÉ CELSO) Infelizmente não é uma democracia, teve um golpe de Estado (referindo-se ao golpe parlamentar que apeou a presidenta Dilma Roussef do poder no impeachment de 2016).

A esse ponto da discussão, o então prefeito de São Paulo João Dória sugere a construção de um shopping, que, segundo ele, tanto atenderia ao grupo Silvio Santos, quanto agradaria a trupe do Oficina, já que poderia incorporar um teatro ao centro comercial. Zé Celso retruca de imediato:

— É horroroso o teatro de shopping. Teatro de shopping é gaveta. Uma coisa muito colonizada, muito enlatada…

O prefeito João Dória refina a ideia, sugerindo a construção de um mall, que ele definiu como um shopping menor. E complementou:

— Você cria um asset, você cria valor, um ativo.

(…)

(ZÉ CELSO) A gente tem que pensar na cidade cara. Eu tenho 80 anos e ele tem mais do que eu (referindo-se a Silvio Santos que na época tinha 86 anos). E daqui a pouco a gente some do mapa (…) A cidade fica.

(SILVIO SANTOS rindo ) Eu não quero morrer. Eu não vou morrer. Se você quer morrer pode ir. (Zé Celso morreu no dia 6 de julho de 2023. Silvio Santos em 17 de agosto de 2024). (1)

Frame retirado do vídeo: ‘Vou transferir a cracolândia pra lá’, diz Silvio Santos a Zé Celso sobre Teatro Oficina”. Folha de S.Paulo, 29/10/2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=S-k4CcFgmJo.

Dois mundos, duas estéticas se entrechocaram. Não se trata da contraposição entre a cultura popular versus a erudita, ou do brega versus o bom gosto modernista. Mas o roteiro é inevitável: Venceslau Pietro Prietra, o gigante comedor de gente, contra Macunaíma. De um lado um país que poderia ter sido e que ainda não foi. Do outro o país que acabou acontecendo, que vingou, moldado segundo a imagem e semelhança do “homem do baú”. O jogo é duro, mas está em aberto, e não é o caso de tomar as vanguardas modernistas como paradigma.

Durante o velório simbólico de Silvio Santos, realizado sobretudo através das redes sociais, repetiu-se à exaustão o quanto o empresário acalentava sonhos, investiu na ficção e viabilizava os devaneios dos outros. Mas o diálogo com Zé Celso transcrito acima é um choque de realidade que nos lança num intenso “aqui agora”  — título aliás de um dos programas do SBT nos anos 90, uma espécie de versão audiovisual do Notícias Populares (NP), o jornal que espirrava sangue.

Frame retirado do programa: AQUI AGORA 1991- 1º Bloco / Estréia do Jornal. CANAL DO BOCÃO/Javier Malavassi, 16/10/2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=cAISI9mfcIU.

Assim, de bate pronto, o que sobrevém do encontro é que na ordem do discurso de Senor Abravanel, o que contava mesmo não era a tradição, nem a família, mas a propriedade — “A única coisa tua aqui, e assim mesmo não sei se é teu, é o teatro”. Essas eram as credenciais para sustentar um diálogo com o patrão. E como veremos, esta hierarquia de prioridades moldou o humor peculiar do seu repertório existencial, assim como demarcou as características do ritual, que das longas cerimônias litúrgicas dominicais extravasou, para ocupar sem trégua o espaço/tempo da cultura de massa e o imaginário local.

Uma onipresença que foi sendo cuidadosamente construída e nos remete ao caráter privado, comercial e rentista de uma etapa importante da acumulação primitiva da indústria cultural no Brasil, a dos meios de comunicação de massa — em sua fase de decolagem nos anos 60 e 70, quando misturavam-se títulos de capitalização, mundo-cão, MPB, melodrama, esportes, programas de auditório (Hebe, Flávio Cavalcanti, Chacrinha…), além de um incipiente jornalismo de inspiração radiofônica entremeada por enlatados estadunidenses, o mexicano Chaves e pitadas de humor. 

Nesse contexto excitante, considerado amador e titubeante, um tanto experimental, Silvio Santos encontrou o habitat ideal para crescer, multiplicar-se e prosperar. E se há uma sagacidade a ser louvada em sua longa trajetória, é o fato de ter percebido que os meios de comunicação não são o 4o poder. Servem ao poder, são sua correia de transmissão. Na verdade encarnam o 5o elemento. Há o fogo, o ar, a terra, a água e a mídia. Uma espécie de mundo paralelo para onde podemos deslocar o espectador. Não é pouco.

Mas deixemos por um instante Venceslau Pietro Pietra em sua obsessão para se apropriar da muiraquitã e voltemos a Macunaíma.  

Curiosamente, em 1987, coube ao jornalista Luiz Fernando Emediato, não por acaso funcionário do próprio SBT, emular o mantra do patrão com 30 anos de antecedência em relação ao encontro descrito lá no início.

Em um diálogo pronto para ser inserido numa montagem qualquer do Oficina, ao formular uma pergunta a Zé Celso, convidado do Programa Roda Viva, Emediato definiu como “patéticas” as tentativas da montagem das Bacantes, de Eurípides, projeto caro a Zé Celso, e o próprio anseio de reconstrução do Teatro Oficina. E lancetou:

Zé Celso ouve pergunta do jornalista Luiz Fernando Emediato (2o da esq. p/ dir.), quando da sua participação no programa Roda Viva, em 1988. Frame/reprodução: https://www.youtube.com/watch?v=Y2K9-PWLI9.

 — Você não é confiável nem para o Estado nem para a empresa privada…nenhum empresário investe num projeto que não tem retorno (…) Lucro Zé, lucro!!!!

Zé Celso retruca:

—Você está incarnando exatamente o personagem do Penteu (…) Só falta vestir uma saia e viver a bacanal ….Ou o Brasil vai para o teu visual, para o teu caminho, para a tua imediatice (SIC), ou o Brasil vai para um outro lado. O outro lado é um lado que traz prosperidade, que traz riqueza. Você está a serviço (…) vc trabalha para esse conceito de credibilidade, você deu o seu corpo para isso (…) é necessário nós ganharmos a cabeça do Penteu porque exatamente a cabeça do Penteu que vai ser devorada no ritual. Isso é o ritual antropofágico. A sua cabeça é a apologia da impotência, a apologia da crise, a apologia da inviabilidade (…) Nós temos que fazer um malabarismo para ser confiáveis para essas pessoas… (2)

Sabemos para que lado enveredamos. E já que estava diante de um repórter do SBT, Zé Celso aproveita o ensejo para desabafar que gostaria de topar de frente com Silvio Santos, para levá-lo ao 3o andar do Oficina (em reformas na época). Talvez, quem sabe, Silvio Santos vislumbrasse as vantagens de apoiar um projeto com vocação para deslocar o eixo cultural do Rio para São Paulo, através da aposta em outro fluxo cultural. Talvez fosse pedir demais.

Bacantes atacando Penteu (Afresco de Pompeia). reprodução Wikipedia: http://surl.li/rnbmok

Como se vê, por causa da desculpa do terreno, esses dois arquétipos se cruzaram em outras ocasiões ao longo das últimas décadas. E mal SS deu o último suspiro, um coro de “Emediatos” remediados, mergulhados de corpo e alma na mesma visão instrumental, proclamaram sem cessar a glória e as virtudes do “ícone da televisão brasileira” da “unanimidade nacional”; do “mestre da comunicação”; do “rei dos domingos”, do ”gênio do entretenimento”. Até Cacá Diegues, quem diria, em sua coluna no Globo resumiu um universo inteiro: “Silvio Santos era um ensinamento, um cara inesquecível, um homem que nos ajudava a viver, um mestre indispensável em nossas vidas” (3). Bye Bye Brasil…

Não se trata somente do velho hábito local de santificar quem passou dessa para a melhor. Há algo de mais profundo aqui, nessa dinâmica de aclamação como forma privilegiada de exercer o capitalismo como religião, como diria Giorgio Agamben. Ou seja, o que ficava confinado às esferas da liturgia religiosa e das cerimônias congêneres concentra-se agora na mídia e, por meio dela, difunde-se e penetra em cada instante e em cada âmbito, tanto público quanto privado da sociedade. De fato, assistimos a um fenômeno avassalador de glorificação e de aclamação de um empresário, de um sistema de comunicação, de um método, de uma forma, de uma estética enfim. Estariam os bajuladores atentos ao tipo de ética que assombrou toda essa trajetória? Voltaremos a ela.

Sorrir e cantar

O riso, em sua acepção mais subversiva, de fato nos ajuda a compreender os vários níveis dos quais a realidade é constituída. O filósofo Henri Bergson dizia exatamente isso das caricaturas: “adivinhar sob as harmonias superficiais da forma, as revoltas profundas da matéria” (4). Além disso, o humor procede descrevendo “minuciosamente e meticulosamente o que é, fingindo crer que é assim mesmo que as coisas deveriam ser” (5). Esse deslocamento, ainda que exagerado, constitui um dos vetores do humor.

Só que nas duas primeiras décadas do séc. XXI vimos emergir, paralelamente ao reposicionamento dos múltiplos fascismos, também um tipo de humor autoritário. Emoções que não mobilizam (não comovem); humores de matriz reacionária que não subvertem. E acima de tudo a defesa intransigente da lógica neoliberal no corpo mesmo das formas de humor, quando prevalece o individual sobre o exercício coletivo da inteligência.

Começamos a nos deparar com fenômenos mais explícitos do humor reacionário, quase uma contradição, na medida em que o riso sempre foi linguagem contestadora e progressista. Mas esse humor de direita não nasce, ao menos no caso brasileiro, com os programas Pânico na TV, ou CQC. Entre os precursores formais destacam-se os programas de auditório lá dos anos 60/70, como os de Silvio Santos.

Na jornada de SS, trata-se sempre da saga individual — ”Eu tenho culpa de ser rico? Eu dei sorte. Você não deu. O problema é teu!!!!”. Essa característica não fica só no âmbito empresarial, e pode nos dizer algo sobre o seu humor. 

A marca registrada da risada sincopada aponta para um humor igualmente atomizado, fragmentado, pontual, análogo à sua atuação como empresário e apresentador. Se considerarmos que o humor é também um exercício coletivo da inteligência, o apagamento de qualquer elemento comum e de construção coletiva no horizonte dos projetos de Silvio Santos (exceção feita às caravanas de fãs, para as quais algum sentido coletivo persiste) temos uma equação que começa a se esclarecer.

O entretenimento sempre mediado pela força da grana, nunca desacompanhado das ações de marketing, já apontaria o embrião de um humor instrumental, reacionário e conservador. Mas trata-se também de humor que naturaliza a diferença social, escarnece dela. Um humor de cima para baixo (ainda que vampirize elementos populares), que instrumentaliza o riso para referendar as formas de linguagem e de um imaginário igualmente agressivo e violento, elementos constitutivos da programação do SBT, que tragicamente substituiu a TV Tupi, primeira emissora de televisão brasileira. Já citamos o “Aqui e Agora”, mas não nos esqueçamos do “Povo na TV” (1980-84), revista de aberrações, assistencialismo e expiação da miséria, que lançou e projetou para a política, dentre outras pérolas, o “advogado do povo” Roberto Jefferson – que elegeu-se deputado federal pelo PTB, em 1982, alavancado pelo programa. Ambos eram programas noticiosos, mas temperados por esse humor de substrato fascista, contribuindo sobremaneira para a desconstrução do conceito de direitos humanos entre nós. 

Roberto Jefferson (o “advogado do povo”) ao lado de integrantes do programa “O Povo na TV” e do ex-presidente Jânio Quadros (na época prefeito de São Paulo). Reprodução Blog/Acervo O Globo: http://surl.li/uhwndw

A esse respeito, a proposta de gincana na cracolândia — onde  “o drogado que mais se destacar no dia ganha um prêmio…” — tipo de piada recorrente no repertório de SS, é revelador da dissolução das fronteiras entre o humorista, empresário e comunicador. Não por acaso seria o precursor e o motivador imbatível dessa dinâmica de transformar tudo numa gincana, num show do milhão, num topa tudo por dinheiro, modalidades ainda presentes na TV aberta brasileira.

Alguém disse que SS construía escadas para os outros crescerem e aparecerem. Mas faltou acrescentar alguns detalhes nessa arquitetura. Tudo é deslocado para uma esfera espetacular, uma espécie de auditório de uma casa de shows na qual ninguém atua como protagonista, mas apenas como mais um(a) colega de trabalho, claque de auxiliares que garantem o protagonismo de quem efetivamente exerce o poder. Os que mais se dedicaram ao exercício da subserviência, inclusive no jornalismo, de fato fizeram carreira, e hoje reproduzem o modelo.

E será preciso ressaltar que o humor e as táticas empresariais são duas faces da mesma moeda. O ensaio fundamental “Noite da Madrinha”, do sociólogo Sérgio Miceli, um dos mais importantes estudos sobre a comunicação de massa no Brasil, define muito bem esse percurso. A citação é longa, mas imprescindível:

…a televisão opera, em primeiro lugar, à maneira de um mostruário da cultura material na sociedade capitalista dependente (…). Esta massa de fetiches (…) é exposta diariamente à cobiça dos “excluídos”. Em plano secundário, constitui mecanismo de mobilização difusa e poupança forçada — chamamos de poupança forçada as mensalidades pagas pelos carnês da “fartura”, como, por exemplo, o “Baú da Felicidade” do programa Silvio Santos, administrado pelo grupo de empresas de propriedade do referido animador. 

O que de fato se oferece às faixas mais pobres de público é um museu de mercadorias em torno das quais se forma um conjunto de aspirações e expectativas (…) Tal caráter manifesta-se explicitamente através da sua dramaturgia mercadológica: compras a crédito e a longo prazo, o rigor com que se exige o pagamento das mensalidades, o esquema de brindes e prêmios de consolação estimulando o consumo, os sorteios e as gincanas, os concursos da “miséria”, os ideais de honestidade e pontualidade exigidos ao consumidor.

O ingresso do espectador no “Bau” é a via de integração no grupo dos pares da escassez. Sabendo-se excluídas do mercado capitalista real e do estilo de vida correspondente, passa aspirar às mercadorias-fetiche de maior prestígio. A alegria amarga e exultante de qualquer concorrente, no instante em que se apropria do fetiche, seja um automóvel, seja um rádio de pilha, atesta a sua inveja reprimida, sua frustração, e o choque de quem está recebendo, em registro mágico, aquilo que se sente desapropriado no plano das relações objetivas. Daí a abundância material e visual do programa, a mímica generosa de uma redistribuição vicárias de bens e dinheiro, a necessidade de exibir dinheiro vivo, contrastando com o elemento humano que comparece, aleijados, desdentados, maltrapilhos e famintos (…)

As escalas do mérito pequeno-burguês foram substituídos pelas manifestações exóticas mais extremas da cultura da miséria. Ganham os fetiches da abundância aqueles que conseguem expressar da forma mais radical, os efeitos da “exclusão”. O homem que não tem mãos mas escreve com a boca, a mulher que sabe descascar cocos com os dentes, a outra que come alfinetes e pedrinhas, a dona de casa com a gargalhada mais estridente, a empregada mais bonita (…) E o mostruário se completa com um bando de mulheres provocantes, diversificadas, todas ótimas segundo os padrões avantajados do senso comum, retorcendo-se languidamente, oferecidas mas inacessíveis, em seu requebro, à avidez do espectador “excluído”.(6)

O trecho resume de forma didática a liturgia do capital material e imaterial do tal legado de Senor Abravanel. Miceli usa oportunamente o termo “poupança forçada” para os chamados títulos de capitalização, como os carnês do baú ou a telesena. Findo o pagamento prometia-se a devolução do dinheiro investido. Entretanto, os “pares da escassez” saíam das lojas do Baú (depois chamadas de Lojas Tamakavy) com um lindo escorredor de macarrão de plástico — que valia bem menos do que o dinheiro gasto no carnê.

Tamakavy, cumpre ressaltar, é nome de um córrego próximo da Terra Indígena Marãiwatsédé, onde hoje ficam Alto Boa Vista e São Félix do Araguaia. Antes do nome ser usado para a rede de lojas do grupo SS, já existia a Agropecuária Tamakavy, que totalizava pelo menos 70 mil hectares no Mato Grosso. O latifúndio foi vendido para Sílvio Santos pelos usineiros paulistas Orlando Ometto e Renato de Almeida Prado, em 1972, durante o governo Médici (7). Extensões gigantescas de terras devolutas, do tamanho de cidades ou países, ao invés de serem destinadas à reforma agrária ou devolvidas aos povos originários, acabaram nas mãos de empresários como SS. Arqueologias do agro pop.

Mapa/reprodução site De Olho nos Ruralistas: http://surl.li/jlgyyk

Estética

Macunaíma e Venceslau Pietro Pietra serão considerados aqui, conforme nos lembra Isa Reis Gomes, profa. de Língua Portuguesa e Literatura do Instituto Federal de Rondônia (IFRO – Campus Porto Velho Calama), dois discursos identitários, duas representações que simbolizam respectivamente, a cultura móvel, flutuante, em plena fluidez e a cultura pronta, petrificada, dominadora, que pretende subjugar o que é diferente…

Macunaíma é esse representante da diversidade, é essa identidade rizomática, capaz de metamorfosear em um príncipe de olhos azuis e depois volta a ser um índio preto retinto.(…) A identidade de Macunaíma não está formada, não é fechada em si, mas aberta a relações com os outros. Macunaíma não se prende a grades como território, religião, raça, língua ou história, atravessa, perpassa por todas essas fronteiras…Já o personagem Venceslau Pietro Pietra representaria o contrário dessa construção. (…) Mesmo sendo Venceslau Pietro Pietra, peruano, italiano, Piaimã, um ser híbrido, age como dominador, como um ser devorador de gente. Consideramos Pietro Pietra um representante da cultura atávica, aquela que tenta dominar a cultura compósita, não se abre a outras relações, não pensa o outro como sujeito, mas como objeto que pode ser incorporado à cultura colonizadora. Venceslau Pietro Pietra era considerado “comedor de gente”, ou seja, comedor de identidades, de subjetividades, transformador da muiraquitã em um pedra de coleção, algo de colecionador. Uma visão européia de devorar e matar a cultura diferente, a cultura que causa ameaça (8). À esquerda foto do ator Grande Otelo que interpretou Macunaíma no filme homônimo de Joaquim Pedro de Andrade, de 1969. Reprodução: http://surl.li/qvlluv

De um lado Oswald, a antropofagia, o Manifesto Pau-Brasil, a Tropicália, Macunaíma, com todas as suas “indiosincrasias“. De qualquer forma a alegria como “prova dos nove” e não como instrumento de poder, ou de controle. De outro Venceslau Pietro Pietra, o Baú da Felicidade, a Roda Jequiti, os aviõezinhos de notas arremessadas no auditório, a força da grana que ergue e destrói coisas belas. “Entre a impotência do que deveria ser (que não é) e a idolatria do fato consumado (que, muitas vezes, possui apenas a aparência de sê-lo), existe um terceiro caminho, que é o estético(9), nos ensina Mario Perniola.

Não se pretende aqui contrapor a figura de SS como exemplo de “mau gostomau gosto”, ou de desqualificar o brega da cultura popular contra uma possível sofisticação intelectual de um Zé Celso. A esse respeito ouçamos Acauam Oliveira — professor adjunto da Universidade de Pernambuco (UPE )— com a devida atenção: 

Mais do que tudo, foi seu Silvio quem moldou meu senso estético. Desvinculado do moralismo conservador (talvez nem tanto assim), é ele quem embasa o lugar afetivo que a cultura de massa ocupa em meu pensamento. Coisa que nem seria de grande nota, não fosse o fato de eu meio que trabalhar com isso. E o que é pior: dentro da Universidade, antro de boas intenções e crítica revolucionária. Negatividade & Radicalidade & Vanguarda & Engajamento. Acontece que aprendi com Seu Silvio que, se o povo está gostando, é porque tem algo ali de muito certo – o oposto da percepção crítica de que o povo precisa ser “ensinado a gostar”, que orienta a percepção acadêmica média. Os pobres são os melhores críticos culturais do país, e por isso nossa arte é o que existe de melhor em nós. Silvio Santos sabia disso. A Globo e a universidade chamam isso de mal gosto e brega. Sou mais o Silvio Santos. (10) À esq. Prof. Acauam Oliveira. Foto/reprodução: http://surl.li/famwac

O texto de Acauam nos remete ao geógrafo Milton Santos, para quem numa sociedade da informação, do consumo e do pragmatismo do capital, só os pobres, conhecendo a experiência da escassez, são capazes de produzir, criar e inventar futuros, através da emoção. Só que uma emoção transformada em linguagem potente e mobilizadora. A ponto da periferia, mesmo a que dá audiência ao SBT, emergir como sujeito e não mais através de intermediários como no grande ciclo modernista, no qual o artista de classe média (escritor, cineasta, artista plástico, músico) era uma espécie de mediador entre o povo e a chamada “alta cultura”.

Toda afetividade e emoção valem a pena. Mas se não existem emoções ruins certamente existem maus usos das emoções. E trata-se de perceber que o projeto estético de SS e da própria Globo  — e não por acaso a emissora se esmerou na aclamação ao novo Santo(s) — ao convidarem os pobres só pela via instrumental interditaram os seus fluxos e obliteram os seus projetos. E por fim, e talvez seja o mais grave,  instrumentalizaram elementos atomizados, parciais e difusos desse “algo ali de muito certo”, “e da arte que é o melhor em nós” para venderem um projeto estético de cultura popular, só que sem povo. E a produção televisiva, por um processo de retroalimentação, volta à massa como se fosse genuína forma de expressão popular, no entanto filtrada sempre pelo “bom senso”,  “senso comum” e “bom gosto” burguêses. E o “algo ali de muito certo” de que nos fala Acauam fica só na aparência, nem na intenção.

Estética é da dimensão do sentir, da sensação. É a ciência da sensibilidade, da percepção, do contato, da especulação, que cria e inventa possibilidades para emergirem novos desenhos de sociabilidade e de vida em comum. Estética é experiência de criação e de invenção, principalmente quando “está tudo dominado”, e somos forçados a inventar novas formas de vida. Por que encarar a sensibilidade no seu aspecto emocional ? O corpo emocional é o lugar onde se desenvolve a mais delicada e extrema das batalhas contemporâneas.  Notemos que é exatamente no terreno do sensível, da sensibilidade, que atua a aceleração da dinâmica capitalista, mais especificamente na rarefação do contato entre os corpos. 

Na liturgia dominical de SS voltávamos à sociedade de soberania, quando o centro do poder era o corpo do rei. Se o monarca adoecesse ou morresse, tudo desandava. E quanto ao corpo social ? Nunca existiu. E nesse sentido podia mesmo haver algo de muito certo e especial, mas sempre era individual e nunca coletivo, ao menos da ponta do emissor. Afinal, no espetáculo a comunicação é sempre unilateral. Não há interatividade (ao contrário do que prega o seu marketing). E o espetáculo é o único que fala, enquanto os “átomos sociais” escutam, como já demonstrou Guy Debord. E sua mensagem é uma só: justificar o próprio espetáculo e o modo de produção de que é originário. 

O bombardeamento midiático da atenção social produz efeitos brutais sobre a sensibilidade humana. O prof. Acauam tem razão ao exigir consideração para um processo que também produz, gera linguagens, imagens, respostas. Entretanto será preciso também encarar a qualidade das emoções. A equação do homem do baú é como um bumerangue de três pontas e três variáveis: emoções que não co-movem (não mobilizam), humor que não subverte e o triunfo do individual sobre o coletivo. Esse bumerangue vai e volta na direção do popular. O que fazer com ele afinal?  Ou melhor, o que o povão fez e fará com o tal legado ? Eis um tema em constante negociação e construção estética e poético/política, e nesse sentido o Prof. Acauam Oliveira tem toda razão.

Referendar a pobreza absoluta dos rituais estéticos levados a cabo pelo homem do baú, transformando-os na genialidade absoluta do maior comunicador de todos os tempos, pode nos falar algo sobre o corpo estético, como feixe de afecções e capacidades. Ao longo dos anos a relação com Silvio Santos foi corporificando um misto de discurso da servidão voluntária e fetichismo da mercadoria. E não por acaso ele foi o primeiro a trazer um reality show entre nós, antes mesmo da Rede Globo – a Casa dos Artistas, em 2001. Formato que sintetiza o espírito da cultura contemporânea, ao misturar exatamente o neo-darwinismo social com a sociedade do espetáculo, quando vencem os mais habilitados a transformarem o próprio corpo em um hype superexposto — enquanto são submetidos a sucessivos rituais de sofrimento (para usar a expressão certeira cunhada por Sylvia Vianna).

Participantes do reality Big Brother (versão 2022) literalmente vestem-se de produtos numa gingana patrocinada pelas Lojas Americanas. Frame reproduzido a partir de vídeo da Globoplay: https://globoplay.globo.com/v/10382443/

Assim, o que a unanimidade crítica enxerga como espontaneidade, aproximação com o público e inventividade ao criar programas (no mais das vezes cópias de modelos do exterior), pode também ser lido como alienação, exploração e dependência de todo e qualquer gesto vindo do audiovisual estadunidense. A mesma subserviência prestada ao poder local, particularmente ao regime civil-militar, que lhe outorgou a concessão do canal de televisão, numa tentativa desesperada de se perpetuar. E será que não se perpetuou?

O processo de santificação de Silvio Santos não se explica somente pelo recalque da servidão voluntária perante o pai-patrão. O projeto estético sem povo parece ser a marca mais indelével.

Gilles Deleuze nos lembra (a partir de Primo Levi) que “a vergonha de ser um homem nós também experimentamos perante a baixeza e a vulgaridade da existência que impregnam as democracias, ante a propagação desses modos de existência e de pensamentos-para-o-mercado, ante os valores, os ideais e as opiniões de nossa época”. (11) 

Talvez “da vida não se leve mesmo nada”, mas o que resta aos que aqui ficam é o mais perverso, vil e vergonhoso uso instrumental que se possa fazer da emoção. 

Evoé! Ai que preguiça!!!!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

1-Transcrição feita a partir do vídeo: ‘Vou transferir a cracolândia pra lá’, diz Silvio Santos a Zé Celso sobre Teatro Oficina”. Folha de S.Paulo, 29/10/2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=S-k4CcFgmJo. Acesso em 02/11/2024.

2-Transcrição feita a partir de: Roda Viva | Zé Celso Martinez Corrêa | 1988. Roda Viva, 08/07/2023. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Y2K9-PWLI9s. Acesso em: 02/11/2024.

3-DIEGUES, Cacá. Silvio Santos vem aí!. O Globo, 25/08/24. Disponível em: http://surl.li/czembb. Acesso em 02/11/2024.

4-BERGSON, Henry. Le Rir. 97a ed. Paris, Preses Universitaires de France, 1950, p.20.

5-Ibid, p.97.

6-MICELI, Sergio. A Noite da Madrinha. 2a ed. São Paulo. Editora Perspectiva, 1982, p.218-221.

7-CASTILHO, Alceu Luís. Silvio Santos obteve 70 mil hectares no Araguaia em 1972, durante governo Médici. De Olho nos Ruralistas: observatório do agronegócio no Brasil, 24/05/2020. Disponível em: http://surl.li/jlgyyk. Acesso em 02/11/24.

8-GOMES, Isa Reis. Macunaíma e Venceslau Pietro Pietra: Representações identitárias. WEBARTIGOS, 19/01/2008. Disponível em: http://surl.li/mumnbw.

9-PERNIOLA, Mario. Contra a Comunicação. São Leopoldo. Editora Sulina, 2006, p.82.

10-OLIVEIRA, Acauam. Ate os Domingos morrem a respeito da morte de Silvio Santos. Site pessoal do Prof. Acauam Oliveira, 19/08/24. Disponível em: http://surl.li/wpclcz. Acesso em: 02/11/2024.

11-DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Felix. O que é a Filosofia. 2a ed. Rio de Janeiro. Editora 34 letras, 1997, p.140.

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