Celebrar o conhecimento em torno da voz expressiva de Maria Bethânia

a voz como matriz de alteridade

Maria Bethânia Vianna Telles Velloso foi empossada no último 03 de maio na Cadeira Número 18 (que pertenceu ao historiador Waldir Freitas Oliveira) na Academia Baiana de Letras, no Salão Nobre do Palacete Góes Calmon, em Salvador.

Coube ao Prof. Paulo Costa Lima, músico, compositor e Professor Titular de Composição e Teoria na Escola de Música da UFBA, o discurso de acolhida para essa “força da natureza”, conforme a definiu. Costa Lima disse que iria falar sobre a “humildade do ouvir”. E o que se seguiu foi uma verdadeira aula/homenagem, a partir de uma voz que é plural, justamente porque é única, incorporada, contextual e relacional (como diria a filósofa italiana Adriana Cavarero). À esq, Maria Bethânia, Paulo Costa Lima e Décio Torres. Foto: Tarso Marketing 

O Prof. Costa Lima intercalou suas falas com a audição e a análise de algumas interpretações de Maria Bethânia. O que segue abaixo são trechos selecionados do discurso de Costa Lima:

“Eu amo a voz e o jeito que a voz canta a canção. O jeito que a voz vive a canção. Na verdade o jeito que a canção vive na voz. A voz se faz canção. A voz é o cérebro que inventa a canção. E ao mesmo tempo coração que faz o meu bater junto. Olhos nos olhos ouvindo Maria Bethania me transformo em canção…

“Na verdade eu amo a voz. Mas o que é mesmo amar uma voz? Quando ouço a voz que amo na verdade eu ouço a reverberação de toda uma série de objetos voz/amor que foram me constituindo como capaz de amar. Então tem uma voz lá atrás e uma voz que eu amo. É um diálogo de vozes. Essa voz que eu amo expressa afetos que eu já havia sentido ou que eu desejava sentir. Põe tudo isso em movimento, faz girar. A voz que eu amo sabe coisas de mim que eu não sabia existir. E amando-a eu a percebo faltante. Por que outra razão me chamaria? Ela me dá sentido. Então eu estou diante da esperança  de completá-la e de completar-me com esse amor de audição. Afinal de contas, ouvir é cantar”. Sussuarana, por favor..

Por que essa voz sussuarana me captura, captura a nós todos? Não é por causa das marcas, eu quase diria esse cenário de filiação a um Brasil sertão, imaginado por Heckel Tavares e Luis Peixoto (…). Essa voz me captura porque essa voz ultrapassa essas marcas desse cenário (…) e instaura uma narrativa afetiva convincente com mil nuances e trejeitos e assim eu tenho a certeza que estou lá nesse ambiente do mundo tão distante. “Foi mandinga, foi maleita”. Vocês ouviram a arte envolvida nessas duas expressões? Tem sussurro, tem carícia (…) Fatos não existem, a única verdade está no tom de voz. O jeito que a voz canta a canção. A voz é matriz de alteridade. É um outro. Ela estabelece uma distância. Essa é uma distância expressiva. Entre tantas coisas envolvidas, a dádiva do timbre. É o parâmetro mais desafiador.

A pesquisa recente da percepção do timbre vocal mostra que ele nos coloca diante de uma persona. Então ao ouvir um timbre novo nós intuitos uma persona. Ali tem uma persona. Nós buscamos entender essa persona imaginando como se essa voz fosse nossa, como se estivesse soando dentro da gente. Por exemplo a maravilha de ouvir “Onde estará o meu amor”, de Chico César, com ele ao violão. É um devaneio de encantamento pela ausência e pela presença do amor, as duas coisas ao mesmo tempo. Mas como é que a voz faz essa construção? Vamos ouvir onde estará o meu amor:

Uma voz que se recolhe e nem quer ser ouvida. Ela simplesmente precisa cantar. Às vezes crescendo com a melodia. A voz brinca de estar longe e de estar perto desse amor. É assim que o presente fica. Brinca de quase sumir e de aparecer por inteiro. E faz essa verdadeira mágica que é deixar a voz soando mesmo durante o silêncio, criando uma continuidade expressiva em nossa cabeça. E tudo isso sempre com o tom de voz mais simples, o signo da autenticidade. E a gente, a gente chora. O jeito que a voz vive a canção. A gente chora não apenas porque está ouvindo a canção, a gente chora porque está vivendo a canção. Numa cambalhota recente na direção à fenomenologia, a teoria da música declarou secundários todos os seus objetos milenares de amor: os intervalos (…), as escalas, os acordes, os encadeamentos, as cadências, os conjuntos, as séries dodecafônicas, tudo isso que a teoria da música sempre amou nessa cambalhota são declarados secundários porque a experiência musical acontece antes de tudo isso (…) E a voz é a experiência musical em carne viva. Os afetos não são algo que acompanham a música. Eles constituem a música. A música é assunto do corpo. Antes que seja qualquer coisa precisa ser algo nosso. Algo através do qual vivemos e de certa forma nos tornamos. A música tem valor porque eu a possuo e porque ela me possui. Deram o nome a isso — o teórico Paul Clifton — de “possessão mútua”. É o nome do conceito. Mas não precisava fenomenologia nenhuma, bastava ir a um terreiro de candomblé na Bahia porque a possessão mútua está lá o tempo todo. 

Mas essa direção é imprescindível para falar da pesquisa de Maria Bethânia e da pesquisa sobre Maria Bethânia. A voz que vive a canção e que possui e é possuída pela música que cria é também uma voz interpretativa. A criação é uma espécie de interpretação do mundo. Cada criação inaugura uma certa perspectiva de olhar para o resto do mundo. Objeto criado olha para todo o resto, interpreta. Portanto não estranha dizer que o trabalho de interpretação musical de Bethânia é um trabalho de interpretação daquilo que nos cerca, via imaginário, via construções afetivas. Maria Bethânia interprete do Brasil, como pontua Heloisa Starling, mas não apenas a partir de temas e contextos. De forma especial a partir da modelagem desses imaginários que a sua construção de afetos vocais propicia. 

A voz também se envolve com o que poderíamos chamar de expansão da alteridade, se instalar a alteridade desde o ping-pong da voz materna. Isso caminha em direção da comunidade, da cultura, da sociedade, isso cria campos de participação coletiva. A voz faz viver esses horizontes, tem papel central e mesmo dá origem a esses âmbitos. Vamos ouvir a Rosa dos Ventos:

A força das sílabas acentuadas e como elas levam a um acelerando da fala. Isso vai criar um efeito de que o discurso desemboca em um determinado lugar (…) Elas usadas como ferramentas expressivas porque elas projetam um discurso no ar acima das nossas cabeças e faz com que a gente imagine uma multidão. Aquela multidão que percebe ainda que tarde o seu despertar. E nem estávamos em 2022. Sem essas escolhas da voz a multidão seria outra, certamente pareceria bem menor, talvez apática. Mas a canção pede e a voz constrói. É uma multidão que desperta ou que pelo menos precisa despertar. Desde 1964 Maria Bethânia traduz o seu país e nos obriga a pensar as nossas contradições como nação. “Se os artistas estão no mundo para construir a função revolucionária da arte ela o faz com perfeição”, nos lembra Marlon Silva. 

A criação em Bethânia se instaura portanto a partir da voz, mas daí se expande para um espaço ainda mais complexo, polissêmico (…) A voz e os seus suportes harmônicos, rítmicos, melódicos, tímbricos… passa a ser a complexidade da coordenação disso tudo. Não é a toa que nós músicos chamamos a percussão da cozinha, por causa dos sabores de timbras que saem de lá. Mas tudo isso projetado num palco onde o corpo se desloca com toda a sua visualidade simbólica. 

Então qual é o cerne dessa fala, qual é o cerne da nossa questão? É a produção de conhecimento em torno da voz expressiva. E no coração da empreitada há aquilo que eu gosto de denominar de personagem da voz. Não estamos falando do personagem do palco e sim de personagens de som, que é o resultado de um mergulho de inteligência e expressividade nas relações entre verso e música. A música do próprio verso sendo uma de suas fontes mais importantes. Desse núcleo saem esses muitos fios na direção dessa atuação rapsódica de Bethânia, como já foi assim descrita.

Uma situação paradigmática encontramos na canção Olhos nos Olhos

(…) Fica assim construído um monólogo e nós temos o privilégio de ver de fora (…) vendo o mais íntimo dessa mulher em sua saga de amor. E essa é uma grande movida da construção de Chico — Buarque de Holanda — e da construção interpretativa de Bethânia, porque esse ver de fora é o que vai garantir toda a carga emocional da experiência dessa canção. Poder ver uma mulher tão de perto. Mais adiante na canção as cores se inflamam. Já não estamos no ambiente do monólogo. Surgem os elementos de um diálogo (…)

Nós temos portanto a impressão de ver essa mulher resplandecendo de emoção. Então a transição da intimidade para espaço do diálogo é um sinal de virtuosismo no âmbito da construção disso que eu estou tentando falar como “personagem de voz”. Houve ai essa transição (…) 

Isso acende em cada um de nós, seus ouvintes, o desejo de mergulhar nessa viagem de voz. Ao ouvir Bethânia nos transformamos na canção…

Acompanhe o discurso de Maria Bethânia, assim como a íntegra da fala do Prof. Paulo Costa Lima:

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