Debordagem é uma escritura à margem, abordagem à deriva, anti-reportagem. Trata-se de uma investigação às avessas, que ao invés de iluminar o seu objeto, procurará retirar dele o excesso de luz, reconduzindo-o à obscuridade de origem. Exatamente o mesmo procedimento que Debord propôs em seu primeiro filme, “Gritos em Favor de Sade”, de 1952. A tela branca sob os diálogos sonoros e completamente negra durante os silêncios.

Debordar é, ao mesmo tempo, o processo oposto ao da sacralização. É a profanação. Profanemos Guy Debord. Dispensemos as fórmulas nas quais ele virou, nos muitos remédios com nomes fantasia dizendo conter o “princípio ativo Guy Debord”. Desembarquemos da mitificação, que o fez cair na boca de políticos, publicitários, jornalistas, que passaram a citá-lo indiscriminadamente.

Profanemos Guy Debord, devolvendo-o àquele uso comum e genérico, como nesses medicamentos mais baratos vendidos nas farmácias populares. Vamos tentar redescobrir o valor de uso de Guy Debord, até para destacar a presença viva do pensamento marxista na sua ação radical, que hoje a crítica prefere abafar e desqualificar, exatamente para que as novas gerações encarem um Debord caricato e despotencializado. É mais fácil vendê-lo como um “teórico da mídia” ou inventor da fórmula “sociedade do espetáculo”, ou ambas as coisas, do que inseri-lo entre os críticos mais violentos de uma “economia enlouquecida” – a “economização da vida”, como diziam os situacionistas, quando se referiam  ao modo de produção e dominação capitalista, onde as relações entre os seres humanos transformaram-se em relações entre coisas mortas.

Debord viu o seu tempo como uma Guerra permanente, sem retorno nem reconciliação. E a sua vida inteira estava engajada numa estratégia. Não são casuais as citações de Tsun Tse e Clausewitz em meio a velhas imagens de guerras no filme  “In girum imus nocte et consumimur igni” (Girando em circulo na noite e consumidas pelo fogo), de 1978. “Não sou um filósofo, sou um estrategista”, disse certa vez Debord numa conversa com Giorgio Agamben. Estratégia parecida com a do desativador de minas. Alguém que se arrisca para desarmar as bombas, e que, ao livrar o terreno dos dispositivos, inventa e cria no território liberado, ou simplesmente o oferece desimpedido à comunidade que vem.